6.1.06

Trecho do livro

Entretanto, Amâncio Amaro acordou do sono intranqüilo guardando ainda a terrível dúvida: não sabia ao certo se ele era ele mesmo, ou se era outro. Estava deitado no raso do chão, os braços abertos em cruz, suado, debaixo do sol e de todo o céu, a boca cheia de terra, e não fazendo idéia do tempo que estava ali. Não sabia se horas, se dias, se nada. Voltava de suas andanças por terras nunca antes sonhadas do mesmo jeito que partira: sem saber. Sem saber de si ou do outro. Nem se eram de fato a mesma pessoa.

Piscou os olhos, virou para o lado. Viu em primeiro plano, a poucos centímetros do rosto, uma carreira de saúvas. De perto, eram gigantes. Uma das formigas parou e olhou para ele. Na retina de Amâncio, a formiga via a formiga. Depois entrou de volta na fila e seguiu adiante com as outras. Estavam ocupadas carregando as folhas e gravetos com que cultivam o fungo que as alimenta. Amâncio tinha seu fungo, lá dentro, no seu próprio formigueiro. Em meio a um amor mal curado e alguns sofrimentos outros, Amâncio Amaro trazia aquela angústia supurando no coração. Já não suportava viver vida que não fosse sua, tomada emprestada por engano, desviada de um outro que a merecia menos do que ele.

Sua recente viagem por terras estranhas em nada ajudara, exceto por essa convicção de agora. De que este então era o mundo, este aperto assim que não sai da gente, um pensamento teimoso, premendo e cingindo o que é de dentro. Um agora que não se acaba de repente, como soluço que não passa com um susto, uma vez que soluço é também susto, doença e cura ao mesmo tempo. Veneno-antídoto. Amásio amargo.

Levantou com enorme esforço e viu que estava nu. Cuspiu. Passou a mão na nuca, sangrava um pouco. Olhou a pedra pequena no chão, vermelha, manchada também. Como não tinha queixo, era esta a única parte do corpo que não lhe doía. Limpou as mãos machucadas e imundas de terra, testou as juntas, contou os estalos, cinco — tudo certo — e tentou assobiar pela milésima vez. Outra coisa que nunca saberia, assoviar. Ou assobiar. Assovi ou assobi, também não sabia. Só fazia coisa que soubesse chamar o nome, senão não. Desistiu.

Virou-se e viu o pé de algaroba lá longe, mais adiante um cachorro latindo e o verde do mato tangendo o sol. Estava no mesmo lugar, graças a Deus. À sua frente, a subida para o alto Brejo das Contendas, onde era possível ficar mais perto do céu e sentir o frio úmido das bananeiras e dos partidos de cana-de-açúcar. Ao seu redor, o povoado de Santana era todo plano. Altura de chão, seco e vermelho e poeira. Mundo virando pó.

Olhou para cima e preferiu esquecer os devaneios de grandeza. Estava surrado, doído, acabado. Deu um passo para trás, afastando-se do açude.

Esquecer é que não podia. Mais um passo atrás e um umbuzeiro surgiu à sua direita, no limite da paisagem. Conheceu-o pela ponta dos galhos que via no canto do olho. Outro passo atrás e o umbuzeiro entrou mais na vista. Esquecer é que era ruim, esquecer.

Outro passo e mais outro, o umbuzeiro inteiro na frente dele, os umbus amarelando de maduros. Continuou voltando para casa de costas, vendo a paisagem por trás — o avesso de tudo: mais bonito e mais bem aprestado que o direito. Começou a correr, o tronco querendo tombar para trás mas as pernas correndo ainda mais para garantir que não. Enquanto corresse, desviaria da queda. E ia vendo as coisas fugindo, ficando pequenas, girando-se embora. Árvores, açude, cachorro, pedra, capim. Tudo passando como se ele parado.

Amâncio Amaro nunca tinha visto a vida desse outro jeito, pelo certo, tão linda. Quase chora. Quase-quase. Pois era assim, de oposto, com as coisas mais indo do que vindo, que pensou estar em maior acordo com o mundo. Pela primeira vez, em seus quatorze anos, conformou-se com as coisas de revés, vida à revelia. Correu o mais que pôde, as pernas bambas de felicidade e pressa. O mundo não roda ele mas ele roda o mundo. Conseguiu. Mas sem ao menos suspeitar de que ele é ele — mesmo se lido de trás para frente.

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